quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Reforma tributária pode deixar cada brasileiro 10% mais rico, diz economista


Autor da mais recente --e não implantada-- proposta de reforma tributária, o economista Bernard Appy vê nova chance de governo federal e Estados enfrentarem o problema em nome da novíssima agenda do país: o resgate da competitividade.

Em 2008 e 2009, Appy elaborou um proposta que continha desoneração da folha de pagamentos, reforma do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e unificação dos sistemas de cobrança do PIS/Cofins para um único imposto, não cumulativo (que não é pago mais de uma vez na cadeia produtiva).

Enfrentou resistências e a reforma não vingou. Hoje, o governo emite sinais de que pretende retomar parte da agenda perdida para impulsionar a economia.

Appy prevê resistências, mas defende que só a mudança do PIS/Cofins poderia aumentar o crescimento da economia, nos próximos cinco anos, em 0,5 ponto percentual por ano --um terço do crescimento da economia previsto para este ano (1,5%).

Se, numa tacada, o governo fizesse a reforma do PIS/Cofins, do ICMS e ampliasse a desoneração da folha de pagamentos para todos os setores, o impacto, calcula Appy, seria um PIB 10% maior em um prazo de 10 anos.

"Daqui a dez anos o país pode estar 10% mais rico. Cada brasileiro pode estar 10% mais rico por conta desse tipo de mudança", diz. A seguir, a entrevista.

*

Folha - Quais são os principais problemas fiscais atualmente?

Bernard Appy - O primeiro é o PIS/Cofins. Hoje há um regime que mistura um sistema não cumulativo com um sistema cumulativo.

As empresas que estão no sistema cumulativo cobram um percentual sobre o faturamento, que é 3% de Cofins e 0,65% de PIS, e não têm crédito. As empresas que estão no regime não cumulativo têm um débito de imposto de 9,25% e um crédito de 9,25% de tudo o que elas compram.

Mas há uma série de restrições sobre o que pode gerar crédito para as empresas. Pelo sistema brasileiro só gera crédito o que é incorporado fisicamente à produção física, e isso abre uma enorme discussão entre as empresas e o fisco sobre o que foi ou não incorporado à produção.

O que seria algo não incorporado?

Vou dar um exemplo. Todo o gasto de telecomunicações de uma empresa industrial não gera crédito. É como se isso não fosse custo de produção para a empresa, só porque não foi incorporado fisicamente ao produto.

O mesmo critério de aproveitamento do crédito apenas para o que foi incorporado fisicamente ao produto vale para o ICMS. Tem Estados que não aceitam, por exemplo, o crédito relativo ao imposto da eletricidade gasta no escritório, só dão crédito da eletricidade utilizada na fábrica.

Outro dia me disseram que um fiscal da Receita não queria aceitar o crédito da madeira comprada por uma empresa de celulose. É lógico que a empresa vai ganhar o contencioso, inclusive na esfera administrativa, mas a própria defesa da empresa tem um custo. A questão sobre o que gera e o que não gera crédito de ICMS e de PIS e Cofins é hoje um dos grandes pontos de contencioso entre as empresas e o fisco no país.

Existia algum argumento lógico quando foi determinado isso, quando a legislação fez essa distinção?

A base lógica era evitar que se contabilizasse como despesa da empresa gastos pessoais. O fato é que, ao mesmo tempo, você gera com isso uma enorme complexidade, um enorme contencioso.

Algum outro país relevante faz isso?

Não, nenhum outro país relevante no mundo adota este critério. Além do contencioso, a limitação do crédito de PIS/Cofins e de ICMS gera problemas de cumulatividade. Hoje, pelas normas da OMC [Organização Mundial do Comércio], um país pode desonerar completamente as exportações de tributos indiretos, e pode cobrar das importações o mesmo montante cobrado da produção doméstica, para dar um tratamento igual entre o produto importado e o produto nacional.

Quando você tem um sistema como o do Brasil, em que uma parte do que a empresa compra não gera crédito, paga-se imposto ao longo da cadeia que não é desonerado da exportação. O país fica menos competitivo. De fato, a competitividade das empresas brasileiras é duplamente prejudicada pelo regime brasileiro de limitação dos créditos: pelo efeito da cumulatividade e pelo custo gerado pela complexidade do sistema e pelos contenciosos. Aliás, os contenciosos representam um custo não só para as empresas, mas também para o governo.

De quanto?

Para as empresas, o custo com advogados e com a mobilização de equipe para cuidar dos contenciosos é elevado. Para o fisco, este custo também não é irrelevante, pois uma boa parte dos funcionários das secretarias das receitas federal e estaduais e das procuradorias se dedica exclusivamente a estes contenciosos.

Outro problema que resulta da sobreposição do regime cumulativo e não cumulativo do PIS/Cofins é a criação de distorções competitivas entre as próprias empresas. Dependendo da estrutura de custos do setor, pode ser mais vantajoso ter como fornecedor uma empresa de lucro presumido (regime cumulativo) ou lucro real (não cumulativo).

Neste caso, está sendo gerada uma distorção competitiva entre as empresas em função do modelo tributário, sem que isso gere nenhum benefício econômico. Eu não contrato o fornecedor que é mais eficiente, que opera com menor custo, mas sim aquele que, em função da tributação, tem o menor preço.

Mas dá pra eliminar a cumulatividade do PIS e Cofins?

Dá. Segundo a imprensa, o governo está estudando migrar todo o PIS/Cofins para o regime não cumulativo e acabar com as restrições ao crédito. Acho que a eliminação da cumulatividade é extremamente positiva, mas é preciso fazer uma transição bem feita, que minimize resistências e não gere distorções. Essa é uma daquelas mudanças que dá diferença no PIB potencial do país.

De quanto?

É daquelas sobre as quais é possível dizer: 'o país vai crescer 0,5% a mais por ano durante cinco ou dez anos'.

Só na mudança do PIS/Cofins?

Só na mudança do PIS/Cofins. Essa é uma daquelas mudanças que faz diferença no PIB do país. A dificuldade é que a mudança na tributação gera uma redistribuição da carga tributária. Há uma composição entre setores eventualmente perdedores e setores ganhadores.

O setor de serviços, por exemplo, está hoje quase todo no regime não cumulativo, que tem alíquota mais baixa, e pode se posicionar contra a mudança se a transição não for bem feita.

Desse ponto de vista, acho que, na transição, para minimizar as resistências e os impactos da mudança, pode-se considerar manter o regime cumulativo para os setores que estão na ponta, no varejo. A forma de tributação na venda ao consumidor final não faz muita diferença, pois não afeta a competitividade dos produtos nacionais.

Uma medida destas certamente contribuiria para reduzir uma eventual resistência do setor de serviços e do comércio. Em todo caso, seria preciso conhecer os detalhes da proposta do governo para fazer uma avaliação mais precisa do modelo que está sendo proposto.

Quais poderiam ser as armadilhas da proposta?

O fundamental é ter uma transição bem feita. Eu vou dar um exemplo: minha empresa, que está no regime de lucro presumido, presta serviços de consultoria para empresas industriais. Nós apuramos PIS/Cofins pelo regime cumulativo, e não geramos crédito para o cliente, porque o serviço de consultoria não é incorporado fisicamente à produção.

Com a mudança, os serviços prestados pela minha empresa vão passar a gerar crédito. Pode até ser que a alíquota fique mais elevada. Mas como vamos passar a gerar crédito integral, com certeza a carga tributária dos nossos clientes vai diminuir, pois hoje eles não têm direito a qualquer crédito.

Se a transição for suficientemente longa, então teremos tempo de negociar os preços como nossos clientes de forma a que tanto minha empresa quanto o cliente sejam beneficiados com a mudança, ou, pelo menos, de forma a que ninguém seja prejudicado. Se não houver este período de negociação, então o cliente será beneficiado, mas minha empresa pode ser prejudicada por uma carga tributária mais alta.

Você acha que o governo então deveria dizer para a sociedade o que é que é a proposta dele, apresentar antes?

O debate prévio é importante, mas é preciso cuidado para não criar um impasse. Quer dizer, as mudanças são muito positivas, mas é possível que haja setores que fiquem contra, mesmo que não haja aumento da carga tributária total. A discussão preliminar é positiva, mas é importante que haja um momento em que o debate seja encerrado, e que o governo de fato se empenhe na implantação da medida.

Mas você acha que o governo não coloca o debate para evitar impasse?

Não. Acho que estão esperando o momento certo de iniciar o debate e fazer a mudança.

Quando fala transição, fala-se em implantar a reforma de forma progressiva ou dar um tempo até que seja implementada?

Acho que os dois. Acho que é importante o debate prévio e a implantação de forma progressiva. Tem várias formas de fazer.

Pela sua experiência no governo, o quanto essa pressão dos perdedores pode atrapalhar?

Essa é uma discussão que pode atrapalhar no Congresso. Para minimizar a resistência no Congresso, é essencial que se entenda o grande benefício para a economia do país que resulta da medida, para tentar minimizar a pressão de eventuais perdedores.

A recente mudança da caderneta de poupança é um bom exemplo. Todo o tempo em que eu estive no governo ouvi dizer que era politicamente impossível mudar a poupança. A mudança foi feita e praticamente não gerou turbulência política. Todo mundo entendeu que era necessário mudar para poder baixar a taxa de juros no país. A coragem que o governo teve em enfrentar a questão mostrou que o problema político era muito menor do que se imaginava.

Agora pelo que você elencou de perdedores, ao que parece, o vencedor seria a indústria?

O vencedor é a indústria do ponto de vista da competitividade. A indústria, principalmente a indústria exportadora, vai reduzir a carga tributária acumulada na cadeia. E mesmo a indústria voltada para o mercado doméstico, à medida que se aproprie de créditos de que hoje não se apropria, vai se tornar mais competitiva em relação ao produto importado. Então eu acho que, diretamente, a indústria é a maior beneficiada. Agora, indiretamente, é o país como um todo.

Por causa desse efeito no crescimento da economia?

Porque a mudança gera um efeito positivo sobre a produtividade, além de reduzir custos. Isso tem um efeito positivo sobre a economia como um todo.

E também o setor de serviços que fornece para a indústria não perde nada.

Se a transição for bem feita, o setor de serviço que está no meio da cadeia, que é fornecedor da indústria, não perde nada. Ao contrário, ele pode até ganhar, como procurei mostrar com o exemplo da minha empresa.

Por que a alíquota média pode acabar caindo na negociação, como você exemplificou?

Porque hoje a empresa de serviços paga PIS e Cofins e não gera crédito. Ela vai passar a gerar crédito. Mesmo que a alíquota fique maior, ela vai passar a gerar crédito integral, e a carga total paga pela empresa de serviços e pela empresa que contrata os serviços ficará menor. Na verdade, além da indústria, o setor de serviços que está no meio da cadeia com certeza é outro grande ganhador com a mudança.

Agora isso já seria um trabalho grande, uma mudança complexa. Por que não implantar o IVA federal de uma vez e simplificar todos os impostos federais em um único, já que vai mudar?

Era a proposta da reforma tributária de 2008, na qual se propunha a incorporação do PIS e Cofins pelo IVA federal.

Por que não foi até o final?

O problema é que as contribuições sociais, como é o caso do PIS/Cofins, têm uma vinculação específica à seguridade social, que é previdência, assistência e saúde, e os impostos, como o IVA federal, não. Na proposta, uma parcela do IVA federal e dos demais impostos federais seria destinada à seguridade, mas mesmo assim houve uma enorme resistência, do meu ponto de vista totalmente infundada, da área de seguridade social.

Por quê?

O argumento do setor é que é importante ter receitas vinculadas exclusivamente à seguridade, mas, do meu ponto de vista, este é um argumento infundado, pois a vinculação na prática não elevou as despesas da seguridade.

As despesas de saúde hoje estão protegidas pela emenda constitucional 29, que determina que a cada ano deve ser aplicado em saúde o que foi alocado no ano anterior, corrigido pelo PIB. Ou seja, as despesas com saúde não dependem da vinculação de receitas.

As despesas da previdência dependem das regras para a concessão de benefícios e não da vinculação de receitas. E a assistência nunca se beneficiou da vinculação. Vou dar só um exemplo: na época que tinha CPMF, uma parcela da contribuição, se eu não me engano 0,08% dos 0,38%, era vinculada ao fundo de combate e erradicação da pobreza.

Antes do Bolsa Família, sobrava dinheiro no fundo de combate à pobreza, que não era gasto e gerava superávit primário. Depois, quando acabou a CPMF, o gasto com o Bolsa Família cresceu independentemente de ter ou não ter vinculação de receita. Então, o que acontece de fato, é que a vinculação de receita não garante que você vai de fato fazer aquelas despesas.

A reforma do ICMS implica redução de carga tributária?

Não. Esse é um ponto interessante. É o contrário: o fim da guerra fiscal resulta em aumento da carga tributária. Porque hoje você deixa de arrecadar R$ 30 bilhões em função de renúncia fiscal.

Portanto, eu acho que faz sentido que essa discussão de fim de guerra fiscal venha junto com uma discussão, por exemplo, de como permitir que todas as aquisições das empresas gerem crédito no ICMS, como o governo está propondo para o PIS/Cofins. Isso já absorveria uma boa parte do impacto do aumento da carga tributária que viria do fim da guerra fiscal do ICMS.

E qual seria o impacto na economia?

Se toda a agenda do PIS/Cofins e do ICMS for implementada --e também a desoneração mais ampla da folha de pagamentos-- o impacto estimado seria de em dez anos poder crescer algo como 1% a mais ao ano. É uma mudança relevante.

Daqui a dez anos o país pode estar 10% mais rico. Cada brasileiro pode estar 10% mais rico por conta dessas mudanças. Agora o benefício é difuso. É muito engraçado porque as pessoas não conseguem entender isso quando avaliam as mudanças das quais estamos falando. Esse tipo de benefício, que se reflete em maior eficiência da economia, ninguém consegue perceber como sendo seu benefício. Mas ele existe. Existe e é relevante.

MARIANA CARNEIRO
DE SÃO PAULO

ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
DE SÃO PAULO
Fonte: Folha de S. Paulo

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